8 de outubro de 2021

Esse Livro

     A figura retórica que rege o livro é a repetição. As formas das frases se repetem, mas não o seu conteúdo. Como no divã… chega um momento em que não repetimos mais o que falamos… mas repetimos como falamos. O jeito de falar se replica quando recordamos um sonho, quando falamos de um peixe, quando falamos do pai, de uma piscina, de uma piada. E esse jeito que se repete por onde quer que nosso pensamento vá é o nosso jeito.

     Nesse livro, até onde consegui contar, as palavras que mais aparecem são os advérbios “não” e “nunca”, geralmente seguidos de um verbo. Essas negativas são intercaladas por vírgulas que marcam a cadência da repetição retórica.

     Os personagens dos contos estão sempre às voltas com esse jeito de ser marcado pela repetição. Uma repetição que consiste num constante “passo atrás” diante da experiência… “não” aceitar, “não” ligar, “não” ter… “nunca” soube, “nunca” mais ser assim, “nunca” falam…

      Só que esse “passo atrás” diante da experiência não é um receio de viver. Não. Longe disso. O passo atrás é um jeito de não se impor ao mundo, de não se impor ao outro. Um jeito de olhar as coisas, dando a elas o espaço e o tempo que precisam para desabrocharem como uma experiência intensa e singular. Os “nãos” e os “nuncas” que se repetem, separados por vírgulas, formam um cordão em torno da experiência que está sendo descrita no livro.

      Os “nãos”, os “nuncas” e as vírgulas formam a curva do braço e do cotovelo onde se aconchega a prosa recém-nascida embalada pela autora.

      Esse jeito de descrever, com o cuidado de não machucar, de não impor, de não sufocar o objeto do texto, é o jeito da autora de nos mostrar a delicadeza da vida.

      E a delicadeza não é uma fragilidade. Nem é uma desvantagem.

      A delicadeza é uma virtude. A delicadeza no ato, a delicadeza na fala, a delicadeza na escrita torna a vida interessante. Porque a delicadeza consiste justamente em dar um passo atrás, aguardar sem se intrometer, e, desse jeito, ver o mundo desabrochar em cada detalhe.

     Nesse livro, vemos pessoas diante da morte, diante da guerra, diante da perda, diante do tédio. Imersos nessas experiências tão humanas, os personagens se veem aprisionados entre o medo, a confusão e a raiva.

     Diante desses sentimentos, a autora faz com que seus personagens deem um passo atrás, olhem o próprio medo e a própria raiva, a própria confusão, e encontrem uma maneira de enxergar com delicadeza , cercando com "nãos", "nuncas" e vírgulas, os detalhes da experiência que estão vivendo.

      O olhar, o gesto delicado sobre a vida, mesmo nos seus momentos de intensa angústia, fazem surgir entre o medo, a confusão e a raiva, um caminho possível: a coragem. Quem consegue olhar os detalhes, mesmo das experiências angustiantes, sabe o que está sendo gestado, sabe o que é possível desabrochar das pequenas coisas.  E desse saber, pode agir para além do medo, da raiva e da confusão... e esse é um agir corajoso. Os textos desse livro nos mostram que a delicadeza é uma forma corajosa de trilhar a vida. E a coragem é uma virtude.

     Mesmo diante da morte de um ente querido é possível olhar e agir com delicadeza… e isso muda a experiência da despedida. Mesmo diante do tédio de uma relação, é possível ver, com delicadeza, os gestos e pensamentos contidos de afeto, e isso muda o silêncio do apartamento. Mesmo diante da angústia da perda é possível olhar com delicadeza o que restou, e isso muda o vazio.

     A delicadeza é uma virtude. A delicadeza é um caminho para um novo mundo.

     Esse “é um livro inacabado e que deseja durar até a última mulher liberta na Terra”.

     Esse livro se chama "Muito Magra para ter um Filho, Muito Gorda para ter um Homem", escrito, com delicadeza, pela amiga Amanda Machado.

 


 

30 de julho de 2021

Um Café Filosófico Português

      Neste ano de 2021, pela primeira vez em minha vida, tive contato com professores e alunos de filosofia do ensino médio de Portugal.

      Apesar da proximidade cultural, histórica e linguística, eu nunca havia lido ou ouvido nada sobre a filosofia produzida ou ensinada no país ibérico.

      Ponto curioso desse diálogo foi uma dúvida recorrente dos professores portugueses que pode ser colocada nos seguintes termos: “Ouvimos dizer que aí no Brasil o estudo da Filosofia é preponderantemente o estudo da História da Filosofia. Isso é verdade?.

      A cada vez que me colocavam essa questão eu pensava um pouco perplexo: “Preponderantemente”? Como assim?     

      Isso porque, para mim, Filosofia e História da Filosofia são indissociáveis, se não sinônimos. Para mim toda Filosofia sempre foi História da Filosofia.

      Essa pergunta pela preponderância, formulada pelos professores lusitanos, sugeria que haveria uma outra forma de fazer Filosofia, para além da História da Filosofia. Isso me soava estranho. Tinha dificuldade em imaginar o que aqueles professores estavam querendo dizer… o que afinal de contas  era, para eles, a Filosofia.     

      Que tipo de aula é essa em que não se estuda a História da Filosofia? Eu não conseguia sequer supor o que discutiam os portugueses numa classe de ensino médio na disciplina de Filosofia.

      Quando o professor Elington Souza, da Escola Secundária Dom Manuel Martins, em Setúbal, pediu-me para falar sobre bullying e gênero aos seus alunos secundaristas, na disciplina de Filosofia, fiquei extremamente constrangido. Porque realmente não sabia o que propor, nem como abordar tais assuntos de uma perspectiva “filosófica”.

      Mesmo tendo aceitado o convite, tinha a sensação de que não saberia o que falar com esses adolescentes. Reuni-me algumas vezes com o professor Elington para tentar entender o que exatamente queria que transmitisse aos seus alunos. Elington tentou acalmar-me dizendo que seria mais uma conversa com os alunos e menos uma exposição acadêmica de um texto sobre o tema.

      Isso me deixou ainda mais confuso, porque a vida inteira meu contato com a filosofia tinha sido algo acadêmico e expositivo, calcado em textos. Tinha a sensação de que, o que quer que viesse a discutir ali, não seria Filosofia. Fiquei com a impressão de que eu estaria enganando os alunos do professor Elington por uma hora.

      Ao final, fizemos as conversas com os alunos. Debatemos os temas. E eu saí da experiência, mais confuso que entrei, sem saber exatamente o que era a Filosofia para os portugueses. Sem saber se tinha contribuido com algo para a disciplina de filosofia cursada pelos alunos da Escola Dom Manuel Martins.

     Há algumas semanas, numa continuação de diálogo com a Filosofia secundarista lusitana, chegou-me pelos Correios o livro “Entre o Prazer e o Dever”, escrito pelo amigo e professor de Filosofia na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, no Município de Portimão, Carlos Alberto Café.     

      Trata-se de um livro de apresentação da Filosofia Kantiana aos alunos do ensino médio em Portugal.

       Lendo a obra, comecei, pela primeira vez, a ter alguma noção um pouco mais textual de como, afinal de contas, a filosofia é apresentada aos estudantes secundaristas lusitanos. E de fato, não se trata de História da Filosofia, nem de leitura estruturalista dos textos. É algo diferente.

      Se no Brasil o acesso à Filosofia se dá por meio dos textos, analisando-se a História do pensamento ocidental, então é justo dizer que há, aqui nos trópicos, uma primazia do contato direto com a obra e sua articulação com a produção teórica sobre a história dos pensamento. Há, se me permitem afirmar, uma certa tirania do texto.

      Lendo o livro do professor Carlos Café, fiquei impressionado com o modo com que a filosofia é apresentada aos estudantes secundaristas na península ibérica. Em Portugal, para meu espanto, corroborando a experiência com os alunso de Setúbal, não há a primazia (ou tirania) do texto original. O acesso à filosofia se dá pela fabulação, pela dramatização, pela ficcionalização das ideias do filósofo… e, por vezes, do próprio filósofo.

     O texto original é uma referência, ou um ponto de partida, mas que pode ser temporariamente abandonado em favor de uma construção imaginária, por exemplo, de um Kant contemporâneo, deslocado no tempo e no espaço, travando diálogos platônicos com personagens fictícios.

      Se no Brasil, a forma de nos aproximarmos de Kant é pela exegese minuciosa do texto, que implica numa certa aridez, num certo constrangimento do aluno em lidar com a Filosofia. Em Portugal, propõe-se uma aproximação mais lúdica, mas que parece tornar a Filosofia algo mais agradável aos olhos do estudante secundarista.

     No livro de Carlos Café há a curios compilação das impressões de alguns alunos secundaristas ao entrarem em contato com a filosofia moral Kantiana:

A tarefa que Kant nos propõe é tão exigente que até nos desencoraja” - Maria Duarte

Se todo ser humano agisse segundo a moral de Kant, julgo que se tornaria frio e incapaz de amar” - Lúcia Luz

O preço a pagar pela moralidade é muito elevado” - Ana Filipa Alfarroba

Gostaria de Saber se Kant alguma vez agiu em nome da felicidade” - Paula Jacinto

      O que aqui no Brasil, invariavelmente, nos perguntaríamos é: “Será que o que esses alunos portugueses estão lendo é realmente Kant?”.  

      Não sei. Mas tenho a impressão de que o modo português de ensinar permite uma intimidade com algum Kant (verdadeiro ou não). A abordagem portuguesa parece nutrir uma certa forma de familiaridade e afeto pela filosofia. Um afeto de tal ordem que permite a esses alunos não terem um temor reverencial pela Filosofia, não se sentirem oprimidos pelo peso da História, mas apropriarem-se dela de alguma maneira, sentindo-se íntimos o suficiente para levantarem perguntas como o fizeram a Maria Duarte, a Lúcia Luz, a Ana Filipa e a Paula Jacinto.

     Há um mar salgado que separa as duas formas, brasileira e portuguesa, de apresentar a filosofia aos adolescentes. Não sei que rumos esse diálogo com os professores do ensino médio de filosofia em Portugal tomará. Mas acredito que existem grandes navegações possíveis.   

     Agradeço aos professores Carlos Alberto Café, da Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes e ao professor Elington Souza, da Escola Secundária Dom Manuel Martins pelas conversas... que hão de seguir.




6 de abril de 2021

Meritocracia e Imposto sobre Heranças

      A meritocracia é um modo de acesso a posições sociais pelo qual o mérito (performance segundo determinados critérios objetivos) define tanto o ingresso quanto o progresso do indivíduo em dado caminho. A meritocracia, portanto, não diz respeito ao que se alcançou, mas como se alcançou. Do ponto de vista social, ela não se verifica em função de quais posições da hierarquia social e econômica este ou aquele indivíduo ocupa, mas como esses indivíduos chegaram a tais pontos. 

      A meritocracia, desse modo, pressupõe uma situação de igualdade de condições materiais que permita a avaliação da performance de cada um para que se possa estabelecer quem terá acesso a dadas posições sociais, apenas segundo o mérito.

      Dessa forma, bastante sucinta, Michael Young nos explica o conceito de meritocracia em seu livro “A Ascenção da Meritocracia”.

      O ENEM, por exemplo, é uma proposta de avaliação pela meritocracia. Seleciona, via mérito acadêmico, o ingresso no ensino superior brasileiro.

      Para garantir a igualdade entre os concorrentes, a prova é a mesma para todos. Todos têm o mesmo tempo para a resolução das questões. Acessam a graduação aqueles que obtiverem a maior pontuação. Há, ao menos aparentemente, igualdade de condições que garantem a meritocracia nesse tipo de certame.

      A premissa que ampara o caráter meritocrático desse processo seletivo é que a avaliação para ingresso no ensino superior se dá nos dois dias de exames do ENEM. Garantida a isonomia naqueles dois dias, garante-se a seleção dos candidatos mais bem preparados segundo o mérito acadêmico.

      No entanto, alguns discutem se a premissa é verdadeira. O ingresso no ensino superior realmente se dá naqueles dois dias? Não se daria antes? Ao longo do ensino médio, por exemplo? Ou mesmo em período anterior, ao longo do ensino fundamental? Ou, talvez, antes, antes mesmo que aquele vestibulando tivesse nascido?

      Conforme movemos o ponto de início da disputa, as condições de igualdade tornam-se cada vez menos determináveis, até o momento em que desaparecem. No caso do ENEM, por exemplo, se a disputa começa no ensino médio, o aluno que teve acesso a uma educação precária, que não teve acesso a material didático de qualidade, que não teve acesso a transporte público regular, que não tem acesso à internet, alimentação… está disputando a vaga no ensino superior em condições de igualdade com o aluno do ensino privado?

      Se o ponto de início da disputa for o ensino médio, pode-se dizer que estão presentes as condições de igualdde para afirmarmos que a vaga na universidade foi preenchida em função do mérito?

      Lembrando que a meritocracia diz respeito não ao que se alcançou, mas como se alcançou.

      A questão da meritocracia fica ainda menos aferível quando se coloca o ponteiro de aferição em pontos mais remotos do passado, como quando esse ponteiro ultrapassa gerações.

      Numa determinada sociedade que preze o valor da meritocracia, que busque igualdade de condições entre seus cidadãos almejando que cada um posicione-se no tecido social de acordo com seus méritos, onde deve ser posicionado o ponteiro de aferição da isonomia, para que possamos garantir que tal sociedade se guie pela meritocracia?

      Nesse ponto insere-se o problema da herança, da transmissão das grandes fortunas pela linha hereditária.

      Os esforços e conquista de um membro da sociedade, ao serem repassados integralmente para seus herdeiros, não cria condições de desigualdade na geração seguinte?

      A cada nova geração a ocupar o espaço social as condições não deveriam ser minimamente iguais para que se garantisse o caráter meritocrático dessa sociedade?

      Hankelson e Wandenström, em estudo sobre a taxação de heranças na Suécia, afirmam que os impostos sobre heranças estão entre os instrumentos fiscais com efeitos mais diretos para a garantia de igualdade de oportunidades a cada nova geração numa dada sociedade.

      No mesmo sentido, Thomas Piketty também indica que a taxação de heranças é um instrumento que incentiva o mérito na sociedade.

      Ou seja, a taxação de heranças é uma forma de garantir que, a cada nova geração a ocupar o palco da realidade social na disputa por posições, existam mínimas condições de igualdade para que as posições sociais sejam preenchidas de acordo com a meritocracia e não em função da riqueza deixada pelos pais, avós, bisavós, etc.

      Mas a coisa não é tão simples quanto parece.

      Os economistas acima citados indicam que as ações humanas comportam certa contradição.

      Por um lado, nós queremos a meritocracia, mas, por outro, também queremos as vantagens competitivas decorrentes do nosso mérito, o que nos torna mais eficientes. A herança é uma vantagem competitiva passada para a geração seguinte e que decorre de nosso trabalho.

      Pikkety chama a atenção para o fato de que mesmo um indivíduo que não recebeu herança acredita que, por meio de seu trabalho deixará alguma para o seu filho. Por isso, em razão dessa expectativa, ele mesmo não deseja que a herança seja sobretaxada.

      Ou seja, deve-se taxar a herança para não se criar disparidades competitivas exageradas, mas a taxação não deve ser tão grande que desincentive o trabalho e o acúmulo de riqueza, tão importantes no mundo capitalista.

      É o que Piketty chama da escolha implicada na taxação de herança (trade-off) entre isonomia e eficiência. E há quem chame Piketty de comunista! Tempos estranhos.

      O fato é que do ponto de vista social, a taxação de herança tem dois efeitos parafiscais (efeitos além da mera arrecadação): 1) garantir as condições de igualdade competitiva na sociedade para que se garanta a meritocracia e 2) manter o interesse dos cidadãos no trabalho e na acumulação de riqueza, criando um ambiente em que se anseie a competitividade e a eficiência.

      Segundo o Banco Mundial, ao realizar análise do índice Gini, que mede o desvio da distribuição de renda dos indivíduos de um país, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, perdendo apenas para África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. Empata com Botsuana.

      No entanto, apesar da absurda desigualdade entre os seus habitantes, é um dos países que menos taxa a herança. Os Estados da Federação brasileira com maior imposto sobre herança possuem alíquotas máximas de 8%, em razão do teto fixado pela Resolução 09/1992 do Senado Federal.

      Na outra ponta do estudo, entre os países com baixa desigualdade social e que efetivamente buscam garantir um ambiente socioeconômico isonômico calcado na meritocracia, nota-se taxações sobre herança que variam entre 19% (Finlândia) e 55% (Japão). Quando se fala de taxação de herança em tais países, não se trata de taxar a casa própria ou o carro deixado pelo falecido. Não. A taxação de que se fala aqui são de fortunas que realmente desequilibram a maneira como um herdeiro ingressa na disputa por posições numa dada sociedade.

      Diante de tais dados, há que se pensar se o Brasil é, de fato, um país em que impera a meritocracia. Há que se questionar se as posições sociais em nosso país são preenchidas segundo o mérito dos indivíduos que as ocupam.

      Aumentar a taxação da riqueza e os investimentos em setores que diminuam a desigualdade social, como educação, seguridade social, saúde pública e direitos trabalhistas, são escolhas políticas que uma sociedade precisa fazer a fim de garantir que a dinâmica social seja regida pela meritocracia.

      Tais escolhas políticas implicam em realizar o trade-off entre eficiência e isonomia.

      Os que atualmente concentram a riqueza no Brasil, tendem a querer que sua riqueza acumulada não seja taxada, garantindo que seus descendentes mantenham vantagem competitiva sobre os demais.

      Os que não possuem riqueza – neste que é o sétimo país mais desigual do mundo – tendem a querer que o Estado taxe a riqueza e invista em serviços que garantam igualdade entre os seus cidadãos (educação, saúde, trabalho, etc).

      Há portanto uma disputa de interesses que contrapõem diferentes classes sociais, quando tratamos do assunto da taxação das heranças.

      Hankelson e Wandenström levantam a hipótese de que as mais significativas taxações sobre heranças na Suécia deram-se em razão de dois motivos: a mobilização social no pós-guerra, quando a sociedade civil passou a exigir uma maior contribuição dos mais ricos para financiar a recuperação econômica do país, na medida em que os mais pobres já haviam sacrificado seus corpos com o trabalho e o combate nos campos de batalha.

      O segundo motivo, indicado pelos pesquisadores, foi a ascenção de forças políticas social-democráticas que conseguiram pautar politicamente o debate da desigualdade social que havia se erguido na população.

      No combate à COVID ficou evidente que a população mais pobre ficou mais exposta à morte e ao vírus, seja por falta de acesso ao sistema de saúde, seja por não ter recursos financeiros para manterem-se em isolamento social (única medida reputada eficaz no combate à Pandemia segundo a OMS), seja em razão do tipo precário de moradia (espaços pequenos, sem acesso à água, sem infraestrutura de informação, etc) que não permite a realização minimamente confortável de um isolamento social.

      O combate à COVID também foi feito, em sua linha de frente, por trabalhadores assalariados, muitos deles recebendo valores mensais abaixo de cinco salários-mínimos, ou seja, pela camada da população que tem dificuldade em acumular riqueza e formar herança a ser deixada para seus descendentes.

      O enfrentamento da questão do vírus foi coletiva, mas foi mais penosa e expôs a mais riscos, a camada mais pobre da população. Ignorar o custo da desigualdade social significa ignorar que a camada mais pobre da população pagou com a vida o enfrentamento social da Pandemia.

      Além disso, importante lembrar que foram os Estados brasileiros, representados no Parlamento brasileiro pelo Senado Federal, que encabeçaram e lideraram o combate à Pandemia do Coronavírus.

      Os governos estaduais e o parlamento brasileiro atualmente têm grande legitimidade, não apenas para avaliar os custos do efetivo combate à Pandemia (o custo da desigualdade social), como também possuem legitimidade para pautar nacionalmente as discussões sobre como garantir que essa desigualdade não se perpetue.

      No que tange ao assunto que tratamos neste artigo, de maneira breve, talvez seja o momento de canalizar essa mobilização social para que se concretize a efetiva taxação de heranças e grandes fortunas de modo a garantir que nos tornemos uma sociedade mais voltada à meritocracia, e que seja garantida a igualdade de condições àqueles que desejam galgar posições no tecido social.

      Talvez seja o momento de se rever a portaria 09/1992 do Senado Federal para se aumentar a taxação sobre a herança no Brasil, num esforço de se criar um ambiente mais igualitário, no qual possa ser realizada a tão bradada meritocracia.

PIKKETY, T, SAEZ, E, ZUCKMAN, G, Rethinking Capital and Wealth Taxation, 2013. Disponível em http://www.piketty.pse.ens.fr/files/PikettySaez2013RKT.pdf. Acessado em 15/05/2020.

YOUNG, Michael Dunlop, The Rise of Meritocracy, Thames and Hudson, 1958.

HERKENSON, M, WALDENSTRÖM, D, Inheritance taxation in Sweden, 1885–2004: the role of ideology, family firms, and tax avoidance, Economic History Review, 69, 4 (2016), pp. 1228–1254, 2016. 

 

How Meritocracy Worsens Inequality—and Makes Even the Rich ...

30 de novembro de 2020

Biosférica

    Um texto, quando o lemos, nos remete a nós mesmos, ou nos remete para além de nós mesmos? E esse alcance da obra para além o para aquém do sujeito fica apenas a cargo do leitor? Esse escopo do impacto de um texto é uma questão individual? Ou não?

    Essas perguntas de caráter semiótico, para lá do problema do leitor, do autor ou da obra, podem ser colocadas também para as editoras…ou, ao menos, para as curadorias preocupadas não apenas com respostas comercias, mas com respostas culturais.

    Em 2019, por sugestão de um dos editores da Confraria do Vento, o amigo Márcio-André de Sousa Haz, participei da Residência de Escritores promovida pela editora independente galega Axóuxere, na aldeia de Rianxo, Espanha.

    Nessa aldeia da Galícia, descobri uma editora preocupada com a autonomia e a sobrevivência da cultura galega. Uma cultura que está se perdendo lentamente em razão dos valores e condições impostos pela contemporaneidade. A língua galega, por exemplo, aos poucos está morrendo devido à influência e imposição política da língua espanhola. As instituições, os jovens, as publicações, em seus usos, aos poucos, cedem espaço para a colonização da linguagem local.

    Além disso, é visível que o vínculo com a terra, com a mata, com as tradições e mitos, outrora muito fortes e presentes na região, também se perdem nas aldeias cada vez mais esvaziadas e envelhecidas da Galícia.

    Diante desse cenário social de alienação, de desagregação cultural, a Editora Axóuxere firmou posição no sentido de lançar textos que remetam o leitor não apenas para si mesmo, mas para além de si.

    Trata-se claramente de uma escolha editorial. Uma escolha por oferecer aos leitores obras que os lancem para além de si mesmos, de suas determinações, para além da realidade aparentemente desfragmentada e fortemente alienante que busca se impor sobre as características e as raízes culturais de um povo e de uma região.

    Os editores da Axóuxere criaram dentro de seu catálogo um selo específico, chamado Clío (musa grega que convida para a reflexão sobre os fatos históricos) que tem como foco publicações preocupadas em discutir os vínculos humanos com a diferença, com a natureza, com os animais, repensar o estar no mundo. São obras que buscam pensar o sujeito para além de si, desde as suas relações com a coletividade e com o ambiente que os envolve e determina.

    Essa disposição para refletir, proposta pelo selo editorial Clío, é a condição para que o leitor repare mais no seu entorno e nas particularidades da própria experiência subjetiva, e possa estabelecer um vínculo mais profundo com aquilo que se está perdendo com o lento esquecimento de si. Não se trata de recuperar uma Galícia passada, mas de repensar as possibilidades, presentes e futuras, para uma Galícia enraizada na consciência de suas origens humanas e naturais.

    Obras como “Chamamento”, “Bolo’Bolo” e “Zona Temporariamente Autônoma”, lançadas pelo selo, convidam o leitor a pensar a realidade e a sua própria condição no mundo segundo outros conceitos, segundo conceitos que nos libertam dos medos, incertezas, vergonhas e aprisionamentos da alienação de nossa dimensão comunitária e de nossos vínculos com o rural, com a natureza.

    Ou seja, pensar para além de si, pode ser também uma escolha editorial

    Pois do outro lado do Atlântico, num outro país que também vê os afetos, os vínculos com a diferença e as relações com o ambiente se desfragmentarem, uma outra editora independente começa agora uma coleção com o objetivo claro de reconstruir ou, ao menos, refletir sobre a angústia causada por essa vida desfragmentada, convidando-nos a pensar para além de nós mesmo, como sujeitos inseridos numa coletividade múltipla e inseridos num mundo natural, num corpo vivo, em relação de estreita interdependência com outros corpos e com a natureza.

    A coleção Biosférica lançada pela editora Confraria do Vento inicia-se com um livro de Regina Schöpke: “As Origens da Opressão: A Escravidão Humana e Animal”.

    O livro de Regina dá o tom do que será esse novo selo da Confraria. “As Origens da Opressão”, fundamentalmente, nos mostra como somos seres incompletos quando abandonamos nossos vínculos com a alteridade e com a natureza. Mas a obra não aponta apenas a incompletude, não restringe-se apenas a dizer “o rei está nu”. Para além disso, o texto de Regina mostra a profunda vergonha, a angústia quase insuportável, a raiva e a perversidade irracionais que decorrem da constatação da nudez que se supunha oculta não apenas pela ignorância, mas pela conivência de todos.

    As Origens da Opressão” busca mostrar como uma vida incompleta, carente de vínculos com outros seres humanos, com as diferenças que constituem aquilo que é verdadeiramente humano, gera sujeitos com vazios de tal ordem que não podem ser preenchidos. Vazios que recorrerão com engenho a todos os recursos disponíveis para serem tamponados, mesmo à violência – se preciso for – para consigo mesmo e para com o outo; seja esse outro, outro corpo, outro gênero, outra raça, outra espécie, outro reino.

“(…) o que podemos concluir a partir disso é que, mais perigosa que a ignorância, é a inteligência sem sensibilidade, ou seja, um homem inteligente e sem sentimento pode fazer coisas que transcendem os males da ignorância”.

    Um sujeito incompleto, buscará uma explicação… ou melhor, uma justificativa da realidade que ampare essa tentativa desesperada de preenchimento de um vazio insaciável, um vazio violento e, por vezes, perverso contra a alteridade.

“(…) os homens inventam suas verdades sem ter o menor interesse de chegar ao seu fundo mais sombrio, ou mesmo chegar ao fundo da própria realidade. São verdades que lhes servem bem, que não lhes causam mal algum”.

    Há um conto de Jorge Luis Borges, chamado “O Rigor da Ciência”, em que se narra a obsessão do desenvolvimento da ciência cartográfica num reino imaginário. Nesse conto, o colégio de cartógrafos, cada vez mais obcecado com a reprodução da realidade de acordo com os rigores científicos, elabora um mapa em tamanho real do império que coincide ponto a ponto com a extensão territorial do País.

    É uma metáfora da imposição da ciência sobre a realidade.

    No livro “Zona Temporariamente Autônoma”, publicado pela editora Axóuxere na coleção Clío, o autor Hakim Bey nos chama a atenção para a diferença fundamental entre o mapa e o território.

    O mapa é uma interpretação da realidade que busca se impor às determinações do território. Não existem fronteiras no território, mas elas estão bem definidas no mapa. Recentemente a justiça brasileira tentou definir o que seria o “território tradicionalmente ocupado pelos povos indígenas”, mas não olhou para o território e sim tentou impor um mapa à ancestralidade de uma cultura. O mapa é um discurso de poder. Há uma diferença fundamental em analisar o mapa topográfico e caminhar pelos morros de uma região, sentindo arder os músculos das canelas e o coração pulsar mais forte na garganta em razão da inclinação do terreno.

    O mapa não é o território. O mapa nos aliena do território.

    O livro de Regina Schöpke nos mostra que não apenas o território está mapeado e o vivenciamos segundo a cartografia, mas que as relações sociais naquilo que têm de mais profundo, os afetos, também passaram a ser vividas segundo o mapa e não segundo o território. E Regina segue no seu texto expondo que, do mesmo modo, nossas relações com a nossa alimentação, com o que comemos, estão mapeadas e nos orientamos segundo essas cartas, sem olharmos para a realidade, para o território.

    “As Origens da Opressão” mostra que internalizamos os mapas, esses discursos de poder, e os seguimos sem notar as características e as peculiaridades do território:

“(…) Nietzsche diz que ‘é preciso libertar a vida’, e ele não está falando, como muitos entendem, de libertar o homem puramente. Ele se refere à vida que foi aprisionada pelo homem e também no próprio homem. E não existe outra maneira de libertar a vida senão pela própria reconciliação com ela, pela sua afirmação”.

    Não sabemos, por exemplo, quantos bois são suficientes para alimentar uma família por um ano. Dois bois? Um boi? Meio Boi? Isso porque não temos mais a relação com o animal, não temos mais relação com a vida que é necessário sacrificar a fim de garantir nosso estilo de alimentação… temos apenas acesso aos pedaços de carne, a frações, desvinculados do animal, da vida, fragmentos embalados a vácuo.

    E exatamente porque a experiência está fragmentada, somos incapazes de pensar nossa alimentação como parte de um todo que implica a relação com outra vida, com a morte e com o sacrifício de outra existência… e certamente estamos muito distantes de pensarmos se queremos que nossa alimentação se dê à custa de outra vida e, se sim, em que termos.

    “A Origem da Opressão” sugere que essa mesma operação de desfragmentação que fazemos com a carne bovina, fazemos com outros seres, com outras carnes e com o próprio ambiente. Um hectare de soja ou eucalipto é tomado apenas numa estreitíssima dimensão comercial, sem levar em consideração o seu impacto ambiental; do mesmo modo a mulher é separada de sua humanidade, sendo muitas vezes tomadas apenas como objeto, como mercadoria, e assim o negro, o trabalhador, etc. E assim, uma interpretação de mundo é imposta, um mapa, sobre a territorialidade da vida.

    Regina mostra nesse texto que inaugura a coleção Biosférica que a imposição do mapa nos obriga a pensar de acordo com as determinações cartográficas… qual o preço do kilo da alcatra, da maminha, do coxão mole…. Sem pensarmos o território, na nossa relação com o animal, com a forma de abate, com a quantidade de recursos naturais necessários para se manter um rebanho, sem pensarmos nos impactos de nossos hábitos alimentares e como isso gera, ao fim e ao cabo, uma vida vazia, uma vida sem afetos e sem vínculos profundos, limitados à bidimensionalidade, à rasura do mapa. E como essa vida vazia pode produzir monstruosidades, justamente porque não pensamos no outro.

    A coleção Biosférica da Confraria do Vento, em certo sentido, assim como a coleção Clío da editora Axóuxere, traz para o leitor textos radicais, entendido aqui o radicalismo nos termos utilizados nas campanhas eleitorais recentes… radicais na medida em que sugerem que olhemos para além de nós mesmos, radicais na medida em que sugerem que pensemos a realidade e a sociedade levando em consideração o outro, o outro gênero, a outra cor, a outra condição financeira, a outra espécie, as outras gerações, que nos antecederam e as que nos irão suceder.

    A coleção Biosférica, bem como o texto “As Origens da Opressão” que a inaugura, é radical na medida em que nos convida a pensar o território para além das determinações do mapa que nos foi imposto.

    E ao mesmo tempo em que são radicais, a coleção Biosférica e a obra de Regina Schöpke, parecem buscar um reestabelecimento dos laços entre a individualidade e a coletividade e a natureza.

“Reconciliar-se com a vida, em última instância, significa reconciliar-se com a natureza, significa reconciliar-se consigo mesmo. (…)”

    Em certo sentido, trata-se de uma proposta de religação entre os seres humanos com suas diferenças e com o meio que os cerca, com suas raízes. A coleção Biosférica, portanto, além de radical, carrega consigo um sentido religioso, de religação.

    É uma coleção e uma obra que nos convida a pensar sobre nossa condição e, uma vez que tivermos refletido sobre ela, nos convida a nos responsabilizarmos pela forma como iremos estabelecer os vínculos com o mundo à nossa volta. É uma coleção que convida ao amadurecimento do indivíduo:

“(…) lutar pela reconciliação do homem consigo mesmo significa dar fim tanto aos tiranos quanto aos pretensos salvadores da humanidade. Significa tirar o homem de sua duradoura infância afetiva”.

 


 

9 de novembro de 2020

Alegria, Alegria

     Escrever sobre um conceito, um conceito filosófico qualquer, implica quase sempre num acerto de contas com a história do pensamento. E nunca é um acerto de contas do tipo troco da feira: “Eu te dei dez, o cacho de banana é sete, tu me volta três”. Não. É algo mais próximo do esforço minucioso de fechar o balanço comercial de uma empresa. Há dívidas de longo prazo, de médio prazo e de curto prazo, algumas delas já se incorporaram ao ativo da empresa, parcial ou integralmente, e já geram dividendos, alguns de longo prazo, outros de médio prazo e outros de curto prazo… e essa conta toda precisa fechar.

    Não à toa, os contadores estão entre os profissionais com mais chances de padecer de estresse e depressão. Do mesmo modo, suspeito que escrever sobre conceitos filosóficos expõe ao risco da angústia o escritor, que está sempre fadado a não conseguir fechar o balanço e discriminar quais ideias já se incorporaram ao ativo circulante ou permanente da cultura, quais geraram dívidas a longo prazo, etc.

     Então a leitura de textos filosóficos, ou ao menos a sua interpretação, tende a ser uma experiência extenuante de conferências e checagens dos ativos e passivos conceituais, uma espécie de auditoria do pensar. Esse Tribunal de Contas da reflexão, essa fiscalização da Receita Especulativa gera textos cada vez mais indexados, mais amarrados, indicando com precisão de onde surgiu cada despesa e cada receita, comprovando cada movimentação com a devida nota fiscal.

    São textos preocupados com os centavos “pennywise”.

    Busque um tema filosófico qualquer no Google Acadêmico, clique em algumas dissertações, teses ou artigos de revistas científicas e verão do que estou falando. Leiam algumas discussões e tentem sentir, tentem colocar-se no lugar dos autores e percebam como esses escritores, acadêmicos ou não, que têm que lidar com o pensar encontram-se sobrecarregados pelo peso monumental da burocracia dos conceitos. É quase possível vê-los angustiados como um dos personagens do Processo de Kafka, mas de um processo especulativo, acadêmico, histórico.

    Essa é a regra, mas há exceções.

    De vez em quando, nessa vida, encontramos textos de pensadores que nos conduzem pelos conceitos como num passeio pelo mundo dos conceitos e não como se o pensar fosse um balanço comercial de empresa. São raros, mas acreditem, existem.

    As ideias, nesses textos, não são apresentadas como relatórios contábeis autorremissivos. Não estamos vendo ali o valor do maquinário imobilizado e sua depreciação. Não estamos diante do financiamento de um galpão ou diante da evolução da dívida com juros a 7.0325% ao ano. Não. Esses autores - abençoados - nos apresentam os conceitos e ideias de outras maneiras: eles nos levam ao pátio da fábrica e nos mostram a máquina adquirida. Nos levam ao galpão de 4 mil metros quadrados e nos mostram como os trabalhadores operarão naquele espaço, explicam como funciona o sistema de ventilação e iluminação. A matéria-prima não é um número vinculado a um empréstimo a ser quitado em tantos meses, mas são toneladas de aço ou madeira que nos impressionam pelas dimensões, pelo volume, organizados num canto do galpão, com etiquetas...

     Não sei se esse modo de escrever filosofia é menos verdadeiro ou menos exato que o modo contábil. Mas é uma maneira que ultrapassa o cerimonial burocrático tão comum nos bancos de teses e artigos científicos.

    Pois nessa pandemia recebi um livro chamado “Alegria, a Verdadeira Resistência”, escrito por Regina Schöpke, professora adjunta do curso de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. E contra todas as minhas expectativas, deparei-me com um livro não burocrático.

    O livro de Regina é um passeio pelo conceito de “alegria” e pelos conceitos vizinhos, como a angústia, a tristeza, o medo, a felicidade… Esses conceitos, nessa obra publicada pela editora Confraria do Vento, não estão quantificados e organizados numa tabela, nem amarrados a cada movimento histórico ou escola filosófica que os tenha apreciado ou alterado.

     Regina opta por uma outra abordagem dos conceitos, sem abandonar o pensamento filosófico.

    Imaginem uma tabela do Excel com um rol de frutas, em que se quantifica o nível de açúcar, o nível de acidez, a porcentagem de água… Embora essa tabela hipotética seja, toda ela, voltada para a rigorosa descrição organizada e criteriosa das características das frutas, o fato é que ao analisarmos as linhas, as colunas e as células em todas as suas minúcias, nada sabemos sobre a maçã, ou sobre a graviola, ou sobre a mexerica…

    De tanto nos ferrarmos nas abstrações numéricas, nos décimos, centésimos, algo maior e mais concreto se perde.

     Há um ditado Inglês para essa miopia: “Pennywise, Pound fool”… alguém que conta demais os centavos, perde-se no real valor do dinheiro, das trocas, do mercado.

    O livro de Regina não trata desses dados abstratos tabelados, estabelecidos segundo comparações decimais de concentração de frutose… Não. O livro “Alegria” é um convite ao leitor para que morda cada uma das frutas da tabela, e sinta o sabor, a textura, a suculência, o azedo, o amargo e o doce.

    O que o livro de Regina nos ensina é que há uma diferença fundamental entre saber a concentração de água numa melancia ou numa manga, numa tabela comparativa com precisão de três casas decimais, e sentir o sumo amarelo ou vermelho escorrer-lhe pelos lábios, quando sentado debaixo da árvore no mormaço do verão:

    “A filosofia deve, mais do que teorizar e refletir, deve produzir uma práxis, deve produzir a própria vida. Sem uma perspectiva prática, a filosofia ou o próprio pensamento tornam-se vazios, razão pura”.

    Regina nos conduz pelos conceitos de alegria, tristeza, medo, felicidade, angustia, evocando maneiras possíveis de pensá-los, convidando o leitor a percebê-los segundo outras perspectivas, outras posturas, sugeridas por grandes pensadores da história do pensamento ocidental.

    Virgínia Woolf ao descrever a monstruosa obra de Edward Gibbons, “Declínio e Queda do Império Romano”, constrói a belíssima imagem de que a leitura de tal estudo, que cobre séculos de História, por vezes, assemelha-se à experiência de estar montado sobre um cavalo selvagem, sendo que a cada salto impetuoso do animal, vemos décadas passarem num átimo. Mas esse é o preço de se estar montado num texto mais arriscado e selvagem e não num potro domesticado.

     O livro de Regina também nos mostra, dessa maneira vertiginosa descrita por Woolf, os conceitos e discussões filosóficas que contornam a ideias trazidas no "Alegria a Verdadeira Resistência". A cada salto conceitual ou histórico proposto pela professora Schöpke, vemos passar sob nossos pés alguns dos maiores personagens da mitologia grega, a relação de Nietzsche com Espinosa, as torções possíveis da filosofia de Heidegger, os lampejos da psicanálise...

    Alguns adeptos da escrita burocrática talvez acusem o texto do livro “Alegria, a verdadeira Resistência” de ser desordenado, sem regras. Talvez digam que o pensamento de Regina não obedece os rigores necessários.

    Nada mais falso. O livro “Alegria, a verdadeira Resistência” é, na verdade, uma festa, e como toda festa ela tem sua ordem, tem suas regras, bastante claras, mas a ordem e as regras estão a serviço da alegria dos convidados, do pensamento, e não o contrário. O livro, como numa festa, está preocupado com os sons, com as ressonâncias, com os sabores, com os flertes, com as paixões, com os desentendimentos, com as inclinações dos conceitos quando colocados para dançar diante de outra reflexão, outro raciocínio, outro corpo. O livro está interessado na vida das ideias, no seu gingado e não em sua autópsia.

    O livro de Regina Schöpke é, antes de tudo, um livro alegre. É uma festa que vale a pena. Fica o convite.

 

13 de abril de 2020

Leonardo Contra Paris


     O livro “Leonardo Contra Paris” é uma jornada pelo ego do personagem principal. Não é uma investigação da consciência, nem um ensaio sobre os conteúdos inconscientes de Leonardo Pontevedra. Não é um livro de autoconhecimento, nem de iluminação espiritual de Leonardo. É uma “egotrip”… se é que existe tal gênero literário... Há controvérsias. Supondo que sim, exista, o livro na verdade é uma “bad egotrip”, uma “egotrip” que dá ruim.
      Essa expressão “egotrip” pode ser entendida como uma autocelebração do próprio ego… absolutamente redundante e autorreferente: a gíria em inglês vai nesse sentido. Mas não é o caso… não há esse caráter masturbatório no texto de Márcio-André… “Leonardo Contra Paris” é uma jornada (trip) que ruma pelo ego. O ego é a paisagem, é o contexto, é o tempo e o espaço da narrativa… como a estrada nos romances “roadtrip”. É nesse sentido que digo que o livro é uma "egotrip".
       Acho bom esclarecer isso logo no início para ninguém ficar pensando: “Peraí… esse não é o significado dessa expressão… em inglês tem uma gíria que significa…etc”.
       Não sei se o/a leitor(a) já teve uma “egotrip”… perdendo-se nos rumos do eu… mas se já teve, é de fé que em algum momento ela se transformou numa “bad egotrip”. Toda “egotrip” que já acompanhei uma hora degringolou e a coisa ficou feia. Feia! Feia de perder amigos de longa data, de desfazer família, de cair em vício, de perder a noção das coisas… etc. Se a tua não virou… talvez seja porque ela ainda não acabou... vai desandar. Paciência… e força!
       O negócio das “egotrips” é que elas são difíceis de explicar. Explicar então como, de repente, elas viram uma “bad”, como e quando e para aonde elas desandam… piorou.
      Via de regra a gente vai contando as mesmas coisas, do mesmo jeito, sobre a vida… como se a pessoa que está ouvindo a história pudesse perceber quando entramos na “egotrip” e quando essa “egotrip” deu ruim… nunca percebem.
        E a explicação é sempre essa chatice… de lei. É... como se fosse… uma outra “egotrip”.
      A minha “egotrip” e as que acompanhei nessa vida caíram sempre nessa sinuca. Resumindo: a coisa é chata, repetitiva e sem muito sentido. 
       Eis o problema de se meter a falar de uma “egotrip”.
      Mas, voltando ao livro.
     É uma “egotrip”. Desde os primeiros capítulos sabemos que é uma. O que pega em “Leonardo Contra Paris” é quando, logo no início, você (leitor) se dá conta que o autor inventou um jeito interessante de desenrolar esse gênero literário. O cara deu um jeito de navegar por essa classe de narrativa sem cair nos problemas recorrentes desse tipo de história.
      Por exemplo, o autor abre mão das regras manualescas de determinar com precisão quem é Leonardo Pontevedra… Márcio-André assume que se é uma “egotrip”… não precisa construir minuciosamente o ego fictício do personagem… o que já exclui o aborrecimento fundamental que constitui as “egotrips”. Mas o leitor não fica desamparado. Sabemos que Leonardo é um escritor, casado, tem algumas relações… mas não sabemos o que exatamente ele escreve, nem detalhes de qualquer dos seus relacionamentos. Não sabemos o que move sua escrita, não sabemos minúcias de sua história pessoal.
      O foco do livro não é determinar em qual ego se está viajando… mas como se está viajando pelo ego disponível.
       Márcio-André reinventa o gênero literário em “Leonardo Contra Paris”? Acho que não. Mas com certeza ele esclarece a forma de se contar essas jornadas, evitando o tédio que lhes é inerente.
      O jeito como a “egotrip” do personagem é construída nesse romance é tão claro e evita tão bem os percalços do “gênero”, que dá pra dizer que “Leonardo Contra Paris” é quase um manual narrativo das “egotrips”…. Para que não se caia numa “egotrip”(a gíria)!
      Pelo amor de Deus, não me entendam mal… Não estou falando aqui de curvas narrativas, arcos, clímax, pontos de viradas… como se a história, a “trip”, fosse um gráfico de contaminação por Coronavírus. Não. Não é nisso que consiste o mérito do livro. “Leonardo Contra Paris” é interessante porque torna evidente o que tem que ser colocado em questão numa “egotrip”.
      A história da jornada pelo ego de Leonardo Pontevedra, curiosamente, não se perde nas armadilhas do próprio ego.
      Vou tentar aqui compor uma metáfora de como o romance de Márcio-André destrincha e revela o gênero literário.
       Lendo o romance, dei-me conta de que toda “egotrip” se estrutura como uma Galáxia.
      Essa imagem pode ajudar quem teve uma “egotrip” ou está pensando em escrever uma a pensar sobre sua própria jornada. Ao menos a mim, esclareceu muito a questão.
      Agora, toda galáxia tem uma maior concentração de matéria (planetas, estrelas, nebulosas, etc) em seu centro e esses elementos se mantém ali em razão da força centrípeta de um buraco negro hipotético que repousa no centro de cada galáxia.
      Quanto mais próximos os astros estão do centro, mais são atraídos por ele. O vazio central faz acelerar para junto de si a matéria que o rodeia.
      Vejam bem… o buraco negro é hipotético, mas o comportamento da matéria, sua concentração nas cercanias do centro, a aceleração centrípeta, tudo indica que ele existe e que tudo gira ao seu redor.
      Essa dinâmica cósmica também opera na viagem em direção ao buraco negro do ego.
     A concentração de matéria é maior quanto mais próximo se está do ego… No caso do artista Leonardo Pontevedra, quanto mais nos aproximamos do ego do personagem, na “egotrip” do romance, maior a quantidade de matéria (palestras em universidades, relacionamentos com editores e jornalistas, admiração de alunas, influência nos meios culturais, prêmios, publicações, colunas em jornais, muitas curtidas nas redes sociais, milhares de compartilhamentos…).
     Márcio-André nunca nos diz no que consiste o ego de Leonardo Pontevedra, mas pelo comportamento da matéria que o circunda é possível deduzir o imenso vazio que tudo atrai para suas cercanias.
      A “egotrip” pela qual o autor Márcio-André nos leva mostra o poder da força centrípeta gerada pelo centro do ego do personagem, um centro que também é geográfico (Rio de Janeiro, Leblon, Sorbonne, Paris, França) e sócio-econômico (Rio de Janeiro, Leblon, Sorbonne, Paris, França).
      A força de atração do ego, como um buraco negro, mantém numa vertiginosa aceleração centrípeta ao redor do vazio vidas, relações, planos, expectativas, frustrações, hábitos, crenças, práticas, éticas, etc.
       Agora, se nos afastamos do centro da galáxia e rumamos em direção à sua periferia, a força centrípeta diminui e a matéria passa a sofrer a influência de uma força em direção oposta, centrífuga, que a expele para fora do centro, para os confins da galáxia.
        Na periferia da galáxia, a matéria é mais rarefeita e tende a se afastar dissipando-se no espaço.
     Na “egotrip” rumo à periferia, Márcio-André descreve como a força de coesão do ego do personagem Leonardo Pontevedra vai se perdendo. Não é fácil sair da influência da força centrípeta do ego; o buraco negro hipotético possui uma força gravitacional de proporções cósmicas… mas quando, na narrativa, consegue-se estabelecer uma certa distância desse vazio, desse centro egoico que geograficamente se situa no Leblon e na Sorbonne, é possível ver a quantidade de matéria se dispersar na vida do personagem à medida que se estabelece em São João de Meriti (diminuem as curtidas, somem os compartilhamentos, as relações ganham outras feições, não há prêmios literários, não há o culto do ego).
      O personagem que antes vivia em torno da imagem criada por si, planejada, meticulosamente gerida, passa a viver em função de outras histórias, algumas sem sentido, outras alheias à sua vontade.
       Mas, por distante que esteja do vazio do ego, Leonardo não escapa de si. Lembrem-se que o livro é uma “egotrip” e não um livro sobre a auto-iluminação, não é um livro de auto-ajuda, Leonardo não se liberta, nem se redime, ele vagueia pelos extremos do próprio ego, mas não o supera.
        De fato, cientistas calcularam a massa total de matéria da Galáxia e concluíram que os astros nos limites da periferia cósmica estariam sob uma aceleração centrífuga tão grande que deveriam ser lançados para fora, escapando por completo da força centrífuga do buraco negro central.
      Por alguma razão, no entanto, a ciência verificou que os astros periféricos mantinham-se presos nos limites galáticos.
      O que os mantinha ali?
      Foi quando se aventou a hipótese da matéria negra. Uma matéria que não seria matéria, não teria peso ou massa detectável, mas que existiria e possuiria força gravitacional suficiente para atrair os corpos celestes que estão nos confins da galáxia.
      Há algo invisível, contraditório, imensurável, que mantém a coesão da galáxia.
      Na “egotrip” não é diferente.
     Algo nos mantém presos a nós mesmos, ainda que estejamos afastados do centro do ego, ainda que estejamos sujeitos à alucinante aceleração centrípeta da periferia que deveria lançar-nos para fora de quem somos, ainda que neguemos nosso próprio eu... Há algo que não nos deixa escapar. Mesmo que esse “algo” seja absurdo, contraditório, invisível, ele está lá.
      Leonardo, no romance, encontra o seu absurdo; o absurdo que o mantém ancorado em si mesmo.
Toda “egotrip” é uma “bad egotrip”… seja rumo ao buraco negro ao redor do qual gira toda a matéria, seja rumo à periferia de si, onde o que se quer é perder-se de si. Toda “egotrip” é uma “bad egotrip” porque está ancorada no vazio… seja no vazio do ego, seja no vazio do absurdo.
     Márcio-André nos apresenta essa angustiante experiência em “Leonardo Contra Paris” de maneira instigante, como uma jornada capaz de distorcer o tempo e o espaço. Uma distorção bem trabalhada e que torna possível vislumbrarmos o cosmos egoico de Leonardo Pontevedra. Uma distorção sem a qual a “egotrip” seria infindável, lenta, tediosa e não nos permitiria ver a verdadeira forma da jornada.
      Mas e o final da “egotrip”?
      Não há final. O vazio da experiência – no seu centro e no seu entorno – sem meio, nem fim, nem início é a estrutura da “egotrip”. Como esses quebra cabeças impossíveis, em que se tem que tirar um anel de aço preso no interior de duas alças de metal… o anel nunca vai sair dali… Não há uma posição inicial ou final do anel. O que podemos fazer - quando muito - é deixar o jogo de lado. Mas uma vez no jogo, a experiência é de angustia, de um tempo que se esvai numa tarefa sem fim. Às vezes temos a sensação de que o anel está menos preso às alças, outras vezes sentimos que ele está mais enroscado nelas… mas ele jamais está solto.
       Essa é a experiência que o livro “Leonardo Contra Paris” nos proporciona.
       Por certo, não é um romance de entretenimento.
     Aos que não podem sair de casa, aos que podem, mas conscientemente permanecem em isolamento e aos que precisam sair, mas buscam tomar todas as precauções, convido-os a essa viagem para dentro de si proposta pelo livro de Márcio-André.
       Aos demais, que estão por aí, seguindo os comandos do Presidente da República, abandonem essa“egotrip” e leiam o livro.




9 de fevereiro de 2020

Galiza: Elogio da Sombra, do Frio, do Vento e da Chuva

     Conheci a Galícia na virada do outono para o inverno, quando esse mundo forjado na face noroeste da Ibéria recolhia-se nos recintos das suas construções de pedras, cobrindo a lenha para mantê-la seca, protegendo-se da chuva, do frio e do vento que tomavam conta das ruas tortuosas da região, como o musgo escuro que se alastra, recobrindo os sulcos pré-históricos dos petróglifos cravados nas encostas dos montes, no meio da mata.

     A Galícia é um mundo que, a mim, só se desvelou na penumbra, no vento e na chuva. As intempéries, que num primeiro momento pareciam barreiras impenetráveis à experiência e à vivência, criaram uma forma particular de fazer ver o cosmos galego.

     Dou-lhes como exemplo o sítio de maior notoriedade da região: a cidade velha de Santiago de Compostela.

     Sob a claridade do dia, vê-se turistas caminhando pelas ruas antigas, vestidos com jaquetas de nylon fosforescentes, os troncos travados em inclinação designada pelo peso das mochilas impermeáveis das quais pendem garrafas de plástico amarradas por cordões coloridos. É impossível não os notar, as armações brilhantes de seus óculos, os smartwatches contando-lhes o número de passos, as calorias, os amortecedores esverdeados dos calçados, as telas brilhantes dos celulares que se erguem acima das cabeças enquadrando a Praça do Obradoiro. Nessa Santiago diurna e luminosa, vê-se as placas de sinalização e fitas de isolamento indicando por onde transitar, determinando os rumos, conduzindo o olhar, pastoreando a experiência.

     Nessa Santiago de luz e brilho os tons pálidos das rochas que se empilham audaciosas em muralhas e paredes, criando esquinas e encruzilhadas, que se sanfonam em escadas, que se arredondam em colunas, inclinam-se em ladeiras e transformam-se em catedrais, perdem a vida. As silhuetas de nylon e LED ofuscam as reentrâncias e lisuras das pedras. Os automóveis enfileirados ocultam as fachadas das construções antigas e as calçadas. O tempo do espírito histórico estampado nos relevos e na textura mineral de Santiago de Compostela resta encoberto pela velocidade brilhante do cotidiano contemporâneo.

     Debaixo dos arcos da escadaria da Praça do Obradoiro, vi um gaiteiro apertar o fole e ouvi o som grave e contínuo do ar criando um ambiente solene para a aguda melodia. Mas a luz do dia mostrou a textura sintética das vestimentas, o rosto entediado do músico, o brilho plastificado do estojo no qual um homem colocava moedas com uma mão enquanto tentava manter o gaiteiro enquadrado na selfie com a outra; ao redor, vi pessoas esperando a melodia como se esperassem um sanduíche no balcão de uma rede de fast-food.

     Ouve-se o som nítido das notas, mas a luz do dia não nos deixa escutar a cultura milenar que vive no fole.

     Com o cair da noite e da chuva, com o frio e o vento, no entanto, pude ver uma outra Santiago.

     De início, eu já não conseguia ler as placas, escritas em letras sem serifas, indicando as rotas, as entradas e as saídas, os percursos predeterminados. Sumiram as fitas de contenção das filas, os andaimes, o tráfego de veículos, as vias se abriram. A Santiago noturna convida os corpos a inventarem suas trilhas. No chão e nas paredes, as linhas de sombra e luz formadas pelas lanternas penduradas à altura de quatro homens mostram novos caminhos. São traçados transponíveis esses noturnos… não são barreiras ou fronteiras da ditadura diurna. E as rochas pálidas do dia, agora, molhadas pela chuva, refletem o brilho ocre das lâmpadas. As paredes, as calçadas, as colunas, as vias, as ladeiras, as escadas, na noite, ganham um brilho amarelado, de um ouro velho, desgastado, recuperam a textura dos séculos.

     Na noite de Santiago vê-se mais as esquinas, as distâncias e os ângulos dramáticos de uma pedra em relação à outra pelas sombras que projetam. As paredes tornam-se cortinas entreabertas convidando o olhar, as ruas tornam-se um palco e o mistério do que pode surgir a cada encruzilhada assimétrica toma conta da cidade. Uma outra Santiago, maior, com mais caminhos, mais misteriosa, mais teatral, brota da penumbra.

     A chuva e o vento e o frio fazem com que menos gente caminhe pelas ruas. Os poucos transeuntes se encolhem, vão mais próximos das paredes, cobertos por casacos pesados e sóbrios, protegendo-se das intempéries. Já não se vê as cores dos abrigos, dos calçados, das garrafas plásticas. As mãos vão metidas dentro dos bolsos junto com os brilhosos celulares. Os corpos tornam-se vultos e os vultos não contradizem o tempo das pedras.

     E então, na escadaria da Praça do Obradoiro, vemos dois ou três homens cujas sombras se confundem. Esses homens têm ao seu lado, no chão, sobre um pedaço de papel, uma bola de pão galego, uma garrafa de vinho e um par de taças. Misturados com seus instrumentos musicais eles sopram e dedilham um som milenar que parece não sair deles, mas dos arcos da escadaria, das pedras, do vento frio que sopra por Santiago. Nenhuma selfie captura essa canção entoada pelas sombras

     A noite anima nos vultos e nas pedras o espírito vivo da história. E o que nelas ainda vive dos séculos, de repente, surge.

     Na manhã seguinte, não encontrarás mais essa Santiago de Compostela que emerge das trevas.

     Nas palavras da poetisa galega Lupe Gómez:

As rúas que busco
agora
desapareceron
a noite pasada

     Mas a Galícia não é só Santiago. A Galícia é também a “Aldea”. A que conheci e habitei por um mês chamava-se Brión.

     Só que Brión não é propriamente uma aldeia. É um pequeno reino. Um reino sem rei, ou rainha, ou corte. Um reino que também conheci na sombra, no vento, no frio e na chuva.

     É um reino formado por outros três reinos antigos que ali se fundiram: o vegetal, o animal e o mineral.

     Na medicina tradicional chinesa há um ditado que diz: “O espírito habita a energia. E a energia habita o corpo”. Corpo, energia, espírito. Um guarda o outro formando a unidade que é o humano.

     Na Aldeia, o homem habita a pedra e a pedra habita a mata. Mata, pedra, homem. Vegetal, mineral, animal. Um guarda o outro, formando a unidade que é a aldeia.

     No inverno galego, dentro do oco das rochas, homens, mulheres, crianças e gatos, acendem e rodeiam “o lume”.

     O lume é uma arte na galícia. Ou seria antes uma ciência? Não dei conta de descobrir. Os galegos submetem a chama, o arder, a fumaça e a lenha à uma observação de rigor científico, sabem o nível de umidade da madeira pelo modo como estalam, conhecem o comportamento da fumaça e o caminho que seguirá da chama até a chaminé, percebem a quantidade de calor pela ardência da brasa, mas manejam esses elementos como antigos mestres de ofício. Cada fogo que arde no interior de um “hogar” (lar) galego é uma criação artística.

     Há algo de misterioso, quase sagrado, cerimonial, no trato do lume.

E nessa atmosfera mística, ouve se o silêncio. 

     O silêncio galego é gestado dentro da penumbra da pedra, em torno do fogo.

     Vivendo o frio da “Aldea”, ao redor do lume, notei que os galegos não se incomodam com os longos instantes de quietude que surgem no meio das conversas e que são tão constrangedores na ruidosa e veroz comunicação dos dias atuais. Suspeito que os galegos suportam o silêncio porque não aprenderam a falar sob a luz, onde tudo precisa parecer estar sempre às claras, tudo precisa parecer já dito, explicado. Não. Tenho a impressão de que os galegos aprenderam a falar no lusco-fusco ao redor da lareira, acolhidos pela quietude do mineral, ouvindo o estalar da lenha que só é audível dentro do halo tênue criado pela chama e onde há muita coisa não dita, onde há coisas que não podem ser expressas, onde a palavra, por vezes, pode causar má compreensão e mal-entendidos. Esse lugar rarefeito, traçado em conjunto pelo lume e pela sombra, forja o calar galego.

     O espírito da aldeia, esse que arde como um lume, habita a pedra e essa pedra habita a mata que cobre o monte... Em Brión, tudo é um – homem, rocha e mata.

     E para que se faça sentir essa unidade é necessário o frio e o vento e a chuva da Galícia. É só nesse clima que se vê o brilho dessa faceta galega.

     A Galícia é uma joia. Agora, não é uma joia translúcida, lapidada em milhares de faces para refletir infinitos pontos de luz. O precioso na Galícia não é o cristal, ou o diamante, ou o rubi, é o “acibeche” uma pedra que, em verdade, é uma árvore fossilizada, uma árvore tornada rocha depois de milhões de anos de intempéries.

     O “acibeche” é um mineral escuro, não reflete a luz, mas a sombra. Sua matéria não é transparente, mas se a observar com cuidado, notará que é profunda. É a síntese dos elementos naturais da Aldea: as intempéries, a sombra, o tempo, o vegetal e o mineral. Falta-lhe o homem para ser a perfeita metáfora da Galícia.

     E eu conheci uma ourives galega, Susi Gesto, que transformava essas gemas em joias, fundindo o tempo, a mata e a rocha ao homem. Em sua oficina pairava um ar de alquimia, uma atmosfera simbólica. Ali não se lapidava o luxo artificial, o supérfluo, lapidava-se o espírito galego, o espírito da “Aldea”. Ganhei de Susi um pedaço bruto de “acibeche”, um pedaço da mata e da rocha galega; um pedaço da sombra e do silêncio da aldeia. Toda vez que o tenho em minhas mãos, lembro-me de Rianxo, do tempo que passei em Brión, ao pé do lume, caminhando pelos montes, provando do pão e da água galega.

    A arte de panificação galega....

     As padarias no Brasil, como quase toda forma de comércio nacional, exibem seus pães e produtos como se estivessem mostrando ao mundo o último modelo de iPhone: muitas luzes, espelhos, vidros reluzentes. Mas o trigo é transgênico, a água tem pesticidas, a mão de obra por trás daquele pão perde gradualmente os seus direitos trabalhistas e de seguridade social.

     O brilho esconde.

     Na Galícia, o trigo não é transgênico (“transgênico nunca” dizem as embalagens), a água vem de montes protegidos, como os direitos dos cidadãos, e esse pão não é exposto como objeto de luxo. A padaria onde comprei pão durante o mês que vivi na aldeia era uma construção de pedra e tinha uma iluminação normal, residencial, poucos watts. A dona Fina olhava os pães e os escolhia pelo som que faziam ao se apertar a crosta. “Esse está bom”. O alimento não é apenas a aparência sob centenas de watts, é a textura, o cheiro, o som, a confiança, entre o cliente e o padeiro, nos ingredientes, no modo de preparo, naquilo que não se vê.

     Ouço ainda o barulho da chuva pingando pelos muros de pedras e “hórreos” (espigueiros), ouço meus pés frios e o vento em minhas orelhas quando, pela manhã, ia comprar uma bola de pão na aldeia de Brión.

     A aldeia são também os caminhos tortuosos.

     Na aldeia de Brión, por exemplo, os rumos respeitam o desenho dos montes, das saliências das pedras e a cada curva encontra-se um cruzeiro. Dizem ser uma herança celta, apropriada por romanos, posteriormente sincretizada pelo cristianismo. Onde os caminhos se cruzam há ali um espírito, seja de que cultura for. E dali se pode tomar diversos rumos.

     Às margens dessas vias tortuosas, rompendo o tempo e o espaço, também surgem os antigos petróglifos, inscrições milenares de culturas passadas que habitaram a região e deixaram registrados seus rituais, suas histórias. Essas grandes rochas são reentrâncias na topografia, um afastamento das estradas, das ruas, da urbe. São uma fissura no mapa, recantos fora da lógica cartográfica.

     E essa estranha topografia galega reflete-se nas conversas. O diálogo galego não se dá em linhas retas, não transita em avenidas ou autoestradas, não têm faixas duplas. Não, o diálogo galego, pelo contrário, é curvo, repleto de sinuosidades orgânicas, não dessas viradas artificiais de noventa graus que recortam as cidades, o diálogo galego se dá por vias estreitas, íntimas, e que aceitam o tráfego em direções opostas na mesma viela.

     O galego conduz a conversa seguindo a topografia da região.

     Roberto Abuín, por exemplo, um dos editores que me recebeu em Rianxo, era um cruzeiro. Sempre que as conversas chegavam nele tomavam outro rumo, tortuoso, mas de alguma forma mantinham uma continuidade orgânica com o que vinha sendo dito. Os caminhos dos diálogos se multiplicavam em Roberto, sem quebrar a conversa, indo às vezes por matas, pelo interior dos montes, pela beira do mar...

     Rafael Xesús, outro editor da Axóuxere, por sua vez, funcionava como um petróglifo nas discussões. Ao chegar neste místico galego, a conversa dava um salto, saindo do tempo e do espaço que vinha seguindo, abandonando o discurso silogístico, acadêmico, e invocava caminhos mitológicos, misteriosos, enigmáticos, atemporais... como os petróglifos.

     A Aldeia é, afinal, um jeito único de se conversar.

     No inverno galego tudo é íntimo, protegido do clima agreste, da chuva e do vento e do frio. As diferenças se aninham sob a pedra, ao redor do lume, os indivíduos percebem que não vivem em função de seus eus, mas em função do clima, da temperatura, do tempo, do outro. Tudo é feminino, no sentido de que tudo se resolve em vínculos, em afetos e não em alienação da cisão entre sujeito e objeto, sujeito e mundo… essa alienação falocêntrica. A aldeia é matriarcal.

     E foi assim que essa Galícia se desvelou para mim, na penumbra, no frio, no vento e na chuva.

     Não sei se a Galícia é realmente isso que lhes descrevi. Talvez meu olhar tenha sido orientado pelos editores da Axóuxere, que, numa jornada iniciática, levaram-me ao cume de um monte sibilante, numa noite fria, escura e chuvosa, e no mais absoluto breu apontaram-me um espaço negro, rodeado de tortas linhas luminosas: os pontilhados de luz eram as aldeias que contornavam a ria, um braço do mar que entra costa adentro, o Mediterrâneo galego, ao redor do qual nasceu a Língua, essa que falo e na qual escrevo.

     Aprendi a ver a Galícia assim, na sombra, no frio, no vento e na chuva. Por isso, sou imensamente grato aos amigos Roberto Abuín Gonzales e Rafael Xesús, bem como à editora Axóuxere, à Deputación da Coruña e ao Conselho de Rianxo, que me convidaram para sua residência de escritores.